Eliezer Batista: O engenheiro que ligou a Vale ao resto do Mundo
O Brasil do início dos anos 60 era um ‘fazendão’ com exportações de US$ 1 bilhão ao ano em produtos como café, açúcar e cacau. Sem importância no comércio mundial, era uma odisséia para o país fechar contratos de exportação de longo prazo. Em 1962, durante o governo João Goulart, a Companhia Vale do Rio Doce, à época uma acanhada mineradora, deu a arrancada para a construção do porto de Tubarão, no Espírito Santo, que marcaria a abertura de uma nova fase nas relações externas do Brasil. A obra foi capitaneada pelo engenheiro Eliezer Batista, primeiro presidente da Vale do Rio Doce oriundo dos quadros da empresa, que completa 80 anos hoje.
Tubarão não só garantiu o crescimento futuro da Vale do Rio Doce, construindo uma ponte entre a mineradora e o resto do mundo, como permitiu aumentar significativamente as exportações brasileiras. O empreendimento deu credibilidade ao Brasil, à época ‘desmoralizado’ frente à comunidade internacional. Batista anteviu no projeto uma chance estratégica para o país. Ele conseguiu fechar contrato entre a Vale e 11 usinas de aço do Japão. O acordo previa a construção de um porto no Brasil (Tubarão) e de três grandes portos no Japão, os quais receberiam navios acima de 100 mil toneladas, inexistentes até então.
‘Foi uma loucura para a época, pois não havia ship design, nem aço para esse tamanho de navio’, conta Eliezer ao Valor, acomodado em sua sala no 6º andar da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), no centro do Rio, onde dá expediente quando não está em viagem, pois ele integra o conselho de administração de seis empresas. Apesar do risco, o Japão aceitou construir os navios. Foi um casamento de interesses.
O Brasil tinha minério em abundância, mas ninguém queria comprá-lo. O Japão precisava do minério para reerguer a sua indústria siderúrgica, quase destruída na II Guerra. Europa e Estados Unidos viam com preocupação a reconstrução do parque siderúrgico japonês, pois ainda prevalecia um clima belicoso. Foi nesse contexto que o então presidente da Vale viu a oportunidade para o Brasil. A empresa tinha, na época, um programa anual de produção de 1,5 milhão de toneladas, mas no fim dos anos 50 produzia 3 milhões a 4 milhões/ano, o que ainda era muito pouco dado o baixo valor do minério de ferro.
‘Abrimos o mercado para um produto que podia valer pouco, mas a idéia era ganhar dinheiro com a logística, transformando uma distância física (a rota Brasil-Japão-Brasil) numa distância econômica (o valor para colocar o minério nas usinas japonesas)’, conta Eliezer. O primeiro contrato assinado com os japoneses era válido por 15 anos e previa a venda de 5 milhões de toneladas por ano. Os japoneses compraram 40% do minério CIF (categoria que inclui o próprio produto, mais frete e seguro), o que permitiu à Vale criar a Docenave, empresa que chegou a ser a terceira maior companhia de navegação marítima de granéis do mundo.
Com o contrato assinado, Eliezer muniu-se de coragem e foi aos Estados Unidos pedir empréstimo ao Eximbank para construir o porto de Tubarão. Voltou de mãos vazias, pois o banco americano não dava crédito nem ao Brasil, nem à Vale, muito menos às usinas japonesas. Entusiasta da disciplina oriental, Eliezer lembra de um provérbio chinês segundo o qual obstáculos podem ser transformados em vantagens.
Ao retornar dos EUA, encontrou apoio do então ministro da Fazenda, Santiago Dantas. ‘Ninguém lembra dele, que foi um homem de decisão, que fez, e a quem eu colocaria entre as maiores figuras da história brasileira ao lado do Barão de Mauá’, elogia Eliezer, que foi também ministro de Minas e Energia de Goulart entre 1962 e 1964.
Tubarão, lembra, foi inteiramente financiado pelo governo brasileiro, que àquela época já tinha necessidade de exportar para melhorar suas contas externas.
O porto ficou pronto em 1966 e produziu uma grande confiança do Japão em relação ao Brasil. A conseqüência foi uma enxurrada de investimentos japoneses no país nas décadas seguintes, incluindo a construção da Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), a instalação no país de usinas de pelotização, de várias companhias de mineração, como a Mineração Serra Geral com a Kawasaki, além da Albrás e da Alunorte (alumínio) e da Cenibra (celulose). ‘Ele foi o sonhador com lama na bota’, define o embaixador Jório Dáuster, ex-presidente da Vale, referindo-se à combinação de duas características presentes na personalidade de Batista: a visão estratégica e o saber do engenheiro.
O reconhecimento a Eliezer Batista veio na forma da condecoração do Sol Nascente, maior honraria concedida pelo governo japonês e que lhe foi entregue pelo imperador Hiroito. ‘Ajudamos a abrir os portos do Japão para o mundo’, avalia Eliezer. Seu empenho em estabelecer negócios com o Japão custou-lhe um alto preço. Sua saúde ficou abalada para sempre, em decorrência das 178 viagens de avião que fez ao Japão, em várias das quais permanecia somente dois dias na terra do Sol Nascente. Estes vôos de mais de 20 horas, em Constelations (aviões que apresentavam grandes variações de pressão nas cabines), lhe renderam quatro tromboses, uma delas à bordo da aeronave na chegada a Bruxelas.
Batista perdeu 70% da vista direita, o que não lhe impediu de manter o entusiasmo de um jovem. ‘Os italianos dizem I vecchi sono i bambini che crescono all´ indietro (Os velhos são crianças que crescem ao contrário)’, filosofa. Na velhice, a memória tende a retornar à infância, diz, como nos tempos em que viveu na cidade natal, Nova Era, em Minas Gerais, quando não havia comunicação e o cavalo era o meio de transporte. Ou então à adolescência em Curitiba, nos anos 40, onde fundou a juventude hippie e se formou engenheiro e arquiteto.
Outra lembrança é a da mulher, dona Jutta, com quem teve sete filhos. Natural de Hamburgo, na Alemanha, ela morreu em junho de 2000. ‘As duas pessoas que conheci que mais gostavam do Brasil e não eram brasileiros são minha mulher e o Lorentzen (o norueguês Erling Sven Lorentzen, fundador da Aracruz Celulose e amigo de Batista)’, diz ele.
Diplomado, Batista começou a trabalhar como engenheiro ferroviário para a Vale. Envolveu-se com a reformulação da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), o que lhe abriu as portas para um estágio nos Estados Unidos, onde passou um longo período.
O objetivo da viagem era aprender sobre ferrovias com os americanos e aplicar os conhecimentos à EFVM, estrada de ferro de bitola estreita, que foi importante para o desenvolvimento do porto de Tubarão. Um dos legados do projeto de Tubarão, na visão de Batista, foi a revolução que causou no mundo da navegação. A parceria com os japoneses levou à construção de navios de grande porte (180 mil toneladas na primeira fase), mudando o paradigma logístico dos graneleiros em escala mundial.
Os navios tinham que ter versatilidade para levar minério e transportar petróleo do Golfo Pérsico no retorno ao Brasil. A inovação teve desdobramentos. Multiplicaram-se os navios graneleiros-petroleiros, dos quais a Docenave chegou a ter a maior frota mundial, lembra Batista. ‘Foi a pessoa que mais contribuiu para o crescimento da Vale do Rio Doce no período da empresa como estatal’, lembra Armando Santos, diretor-executivo de ferrosos da Vale.
Novas oportunidades surgidas na navegação marítima levaram a Vale a construir um porto em Bakar, na Iugoslávia, com dinheiro do governo iugoslavo, para atingir o centro da Europa com cargas graneleiras. O marechal Tito esteve no Brasil e encontrou-se com Batista, que ficou com pecha de ‘comunista’ por falar em russo com o líder iugoslavo. Batista fala sete idiomas (português, espanhol, francês, italiano, alemão, inglês e russo). Aprendeu russo ainda jovem, em Curitiba, onde freqüentou coral de igreja. Até hoje, tem apreço por música sacra, mas seu hobby é a botânica, e a ela se dedica em sua propriedade de Morro Azul, na região serrana do Espírito Santo.
Em 1964, após o golpe, ele escapou por pouco da cassação, teve de deixar a Vale e foi dirigir a MBR, mineradora ligada à Caemi, na qual foi gestado o projeto do porto de Sepetiba, no sul fluminense, outra de suas paixões profissionais. Em 1968, já no governo Costa e Silva, retornou à Vale pelas mãos do então presidente da mineradora, Antônio Dias Leite, o qual lhe encarregou a tarefa de reconstruir o mercado da empresa na Europa.
Só voltaria ao Brasil em 1979, quando assumiu pela segunda vez a presidência da CVRD a convite do então presidente da República, João Batista Figueiredo. O retorno de Batista deu origem a outro grande projeto da Vale estatal, Carajás, no sul do Pará, baseado no sucesso de Tubarão. Carajás era uma mina que tinha sido descoberta pela United States Steel e na qual a Vale tinha conseguido ter participação. Carajás, com suas reservas gigantescas de minério de ferro, oferecia ao Brasil a oportunidade de ter influência na formação de preços no mercado mundial.
Naquela época, a Transamazônica tinha desmoralizado os grandes projetos no país. ‘Ele foi a pessoa que, mesmo levando porrada de todo mundo, acreditou na potencialidade de Carajás’, diz o amigo Félix Bulhões, ex-presidente da White Martins. Minas Gerais fez oposição ao projeto, pois sentiu que a Vale do Rio Doce estava migrando para a região norte do Brasil. Batista montou uma equação para tornar viável o financiamento do projeto, já que o país passava por difícil situação financeira.
Depois de idas e vindas conseguiu o apoio do então presidente do Banco Mundial, Robert MacNamara, do KFW (banco alemão de desenvolvimento) e da Comunidade Européia, que concedeu empréstimo de US$ 600 milhões para Carajás em termos vantajosos (enquanto Itaipu pagava 17% de juros flutuantes, Carajás conseguiu cinco anos de carência e juros fixos de 5% ao ano). Foi um projeto pioneiro de desenvolvimento sustentável na Amazônia, recorda Batista.
‘Os ideólogos da teoria do desenvolvimento sustentável (que soma as questões ambiental, social e econômica) aproveitaram Carajás como modelo’, revela Batista. Hoje, o engenheiro não entende como o Brasil, que foi pioneiro nesta matéria, não tenha seguido a linha original do conceito. Na época da implantação de Carajás, a Vale formou um conselho de cientistas para pensar todas as etapas do projeto, tratando de forma simultânea os diferentes problemas do desenvolvimento sustentável. O esforço não evitou confusões.
Nos anos 80 surgiu a idéia do grande Carajás, projeto que levou agricultura e pecuária para àquela região da Amazônia. A opinião pública na Europa enxergou Carajás como uma coisa só e a Vale passou a ser alvo de críticas, o que levou Batista a dar explicações em mais de uma oportunidade no próprio Parlamento europeu. Em 1986, com problemas de saúde, deixou a Vale e voltou para a Europa.
Feitas as contas, Batista calcula que viveu mais de 30 anos no exterior, mas confessa gostar mesmo do país onde nasceu. Um dos seus planos é escrever sua biografia. ‘Se você cultiva histórias bem-sucedidas, está cultivando a auto-estima e, ao fazê-lo, aumenta a confiança no país. Como alguém que não confia em si mesmo vai confiar no país?’, questiona Batista, um idealista com os pés no chão.