Em toda a casa, tal como acontece no volume do estar, o perfil de cobre faz a interface da base de concreto com o fechamento de madeira

Desenho do Brasil busca diálogo com arquitetura finlandesa

Localizada numa pequena cidade na Finlândia, a casa de final de semana foi encomendada por clientes que admiram a arquitetura brasileira. Para a escolha do projeto, organizaram um concurso fechado do qual só participaram profissionais do Brasil. Vencedores da competição, Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, do escritório Brasil Arquitetura, revelam que a proposta tentou estabelecer um diálogo entre a arquitetura finlandesa e a brasileira.

À primeira vista, olhando as fotos da casa na Finlândia, não há como não lembrar Alvar Aalto. “Ele sempre foi uma referência para nós”, conta Marcelo Ferraz, cuja arquitetura é marcada por influências diversas, como as edificações rurais brasileiras, Lina Bo Bardi, Luis Barragán e Oscar Niemeyer. Contudo, pela própria localização, destacam-se as relações com Aalto, notadas, por exemplo, no telhado com grande inclinação, tal como na Villa Carré (1956, França), uma das mais conhecidas obras do mestre finlandês. A observação atenta revela o truque por trás desse tipo de desenho: Aalto e seus discípulos diretos (como o espanhol Fernando Higueras) utilizam esse recurso para suavizar o volume maciço, reforçando a horizontalidade e o ritmo da construção. A casa francesa, de planta com diversos volumes recortados, tende para o quadrado organizado a partir de um centro. A cobertura alongada se afirma como a expressão mais forte de sua volumetria, diminuindo o impacto da massa difícil de trabalhar.

Vista do fundo, a cobertura da casa induz à leitura de um telhado-borboleta


O concreto foi a solução adotada para a abertura do estar

 

O escritório (à esquerda) e parte do estar (à direita), divididos pela circulação de vidro e pelo muro

Mas se compararmos os telhados alongados em Aalto e as obras do Brasil Arquitetura, perceberemos uma grande diferença: tanto neste como em outros projetos da dupla brasileira – a casa em Cotia, de 1998, por exemplo -, eles cobrem volumes pavilhonares. Assim, reforça-se o sentido do olhar, mas não há uma busca por minimizar o impacto volumétrico.

Muro de pedras da Lapônia organiza a leitura interior/exterior

Por outro lado, tanto em Aalto como em Ferraz/Fanucci, o telhado de inclinação única ressalta a posição intermediária entre a tradição e a modernidade. Em outra tendência arquitetônica, mas com linha semelhante de raciocínio, poderíamos fazer conexões, por exemplo, com a casa Errazuriz (Chile, 1930), de Le Corbusier. Aproximando-se do vernacular, Corbusier criou o telhado-borboleta, cujo caimento aponta para uma única calha. Na residência finlandesa, cuja cobertura é de cobre, a leitura transversal remete ao telhado-borboleta.

         

O platô do terraço é parcialmente protegido por três faces, tal como em obras de Aalto

Mas a obra de Ferraz e Fanucci na Finlândia possui parentescos com outros mestres da arquitetura do século 20. Além da cobertura, o principal elemento do projeto é o muro que corta transversalmente a construção. No primeiro desenho, ele seria de concreto ciclópico, mas foi executado com pedras da Lapônia. Visto por quem chega à casa, é um elemento perpendicular, uma barreira física ao avanço; torna-se, contudo, um elemento-surpresa que protege o primeiro olhar da visão do mar. Internamente, esse elemento acompanha a circulação coberta por vidro, o que torna os diversos blocos volumetricamente autônomos. Estes são organizados conforme a vista e o uso. Os dormitórios, por exemplo, com desenho dentado, lembram soluções de Josep Antoni Coderch.

Volumes contrapostos pelo telhado-borboleta são separados pelo terraço

Os clientes tinham clara percepção da diferença entre a casa finlandesa e a brasileira: enquanto a primeira é um abrigo, protegida do clima hostil, a segunda pode ser aberta à paisagem, mais intensamente relacionada com o espaço externo. Assim, interessava-lhes que o muro também organizasse a leitura interior-exterior. Essa ideia, aliás, não é nova: em residências da década de 1920, Mies van der Rohe usou tijolos para criar esses planos. Marcel Breuer, seu aluno na Bauhaus, enfatizou o recurso, com muros de pedra em seus projetos de moradias. Se observadas com atenção, algumas casas de Breuer, como a Gueller (Long Island, EUA, 1944), assemelham-se mais à da Finlândia que as moradas de Aalto. Além dos muros, Breuer também usa a cobertura do tipo borboleta, faz aberturas semelhantes e fragmenta os volumes de forma linear (sem perder o fio da meada, poderíamos também fazer conexões com as casas usonionas de Frank Lloyd Wright).

         

Os ambientes de estar e jantar são integrados à área da cozinha

De volta ao muro, trata-se de um elemento bastante presente na arquitetura da dupla brasileira. Podemos apontar, por exemplo, a casa em São Francisco Xavier (2000), onde ele enfrenta e revela a leitura topográfica. Ou então, mais próximo do partido da residência na Finlândia, o muro-jardim do Centro Cultural Cataruna (2002), em Pernambuco, ou o da sede do Grupo Corpo (2001), ambos não construídos.

Para enfrentar condições ambientais adversas, a morada finlandesa possui propostas que a diferenciam de projetos semelhantes no Brasil. O piso, por exemplo, é aquecido, usando o calor do solo. A circulação coberta por vidro, estruturada com o mesmo material, foi calculada para suportar o peso da neve e possui um sistema que acelera o derretimento. Os fechamentos da residência são de madeira de origem canadense (resumidamente, um sanduíche de madeira na parte externa, seguido de colchão de ar, material térmico e gesso acartonado por dentro), solução que só apareceu na segunda fase do concurso. Inicialmente, ela seria inteiramente de concreto aparente, mas com aparência final semelhante, pois as fôrmas seriam verticais, tais como as réguas. A construção está sobre uma base de concreto. A estrutura é invisível e variada. Definida por um profissional finlandês, mistura concreto, aço e madeira, conforme a necessidade específica de cada situação. “Achamos a situação muito curiosa, pois no Brasil, em geral, definimos um sistema estrutural preponderante”, conta Fanucci, sentado à frente de enormes reproduções de obras de Aalto nas paredes da sala de reuniões de seu escritório. “Mas achamos pertinente o raciocínio e aceitamos.”

O pátio da sala de estar, protegido em três faces, possibilita o uso da área externa no verão. Esse tipo de solução fazia parte de alguns trabalhos de Aalto, como a casa de Muuratsalo (1953). “Em todos os projetos que fazemos, consideramos as questões de Aalto. Neste, não poderia ser diferente”, conclui Ferraz.

 

                           Estar, com destaque para a abertura da quina

 

                                        Vista da circulação, coberta por vidro

Autor: Francisco Serapião